sábado, 6 de outubro de 2007

RELIGIÃO X MORAL

Quem você quer ser?

Idos de 1994; eu, um adolescente de 14 anos que acabara de sair da aula de religião em um colégio católico na cidade de Salvador estava passando pelo corredor em direção ao campo de barro, pensando, na condição de zagueiro “caneludo” do time de futebol da 7ª A, no jogo final do campeonato contra o 3º E, campeões do 2º grau, ou seja, meus dias estavam contados!

De repente, percebi que estava sendo seguido; seriam meus algozes? Continuei impávido até o fim do corredor, afinal, tinha acabado de aprender que Deus estava sempre comigo, e realmente está.

Mais na frente, fui tomado de assalto por quatro elementos que disparavam frases soltas: “Você tem uma Jackson?”; “Como que ela é?”; “Americana ou Japonesa?”.

Hoje reconheço, aquele momento foi divisor de águas em minha vida (nunca mais joguei bola), e foi ali que nasceu a Cogumellos.

Bom, Jackson é a marca de uma guitarra que comprei nos EUA e que naquela época dificilmente se via por aqui. Tem gente que até hoje me chama de Jackson por conta disto!

Os caras que me cercaram eram: Lucas, um amigo de infância que eu havia perdido o contato, mas que compartilhava um amigo imaginário comigo quando tínhamos uns 6 ou 7 anos; conhecíamos uma bruxa que morava na casa do avô dele; eu juro que via, ele também jura. Thiago, um amigo que havíamos estudado juntos na 1ª série do primário, mas, ele repetiu está série e perdemos o contato. Daniel, um cara que chamavam de “Inhoque”, pois ninguém sabia pronunciar seu sobrenome italiano, que eu também não sei escrever. Alexandre, que na época era torcedor símbolo do Vitória e sempre nos falávamos na Fonte Nova; eu sinalizava pra ele, que, de tamborim na mão, gorro na cabeça, rosto pintado, abraçado com Rosicleide e Tonho barriga mole, só levantava no intervalo pra tomar um copinho de cachaça (daquelas que desce pela torneirinha de alumínio), e comer ovo de galinha com corante (seu preferido era o vermelho).

O que eles queriam?
Montar uma banda de Rock.
Eu aceitei.
No primeiro ensaio ninguém sabia tocar nada, ou melhor, cada um sabia um pedaço mal tocado de uma música mal ouvida. Então, ficamos conversando.
Foi ai que alguém falou: - Duda vai ser quem?
Eu indaguei: - Como assim?
Logo fui explicado:
Lucas era Einstein; Thiago era Newton; Daniel era Copérnico; Alexandre era Galileu. Eu precisava ser alguém!
A pergunta seguinte me intrigou: - Quem você quer ser?
Meu Deus, eu já tinha ouvido falar em Einstein, Galileu, Newton, não conhecia Copérnico e nenhum outro nome, então, quem eu seria?... Paulo Coelho?!
Sai pela tangente: - Quero ser Einstein, sempre gostei dele!
Os caras em uníssono: - Não dá !!!
Eu: - Por quê?
Lucas: - Eu sou Einsten! (Neste instante retira de dentro da carteira uma foto, como se fosse sua identidade, em que aparece com um palmo da língua pra fora e o cabelo assanhado).
Foi argumento suficiente pra me convencer.
Alguém sugeriu: - Você pode ser Kepler!
Ok, Kepler!
No outro dia corri para a biblioteca e pesquisei tudo sobre Kepler.

Pois bem, a partir de então estavam circulando pelos corredores do maior colégio católico de Salvador, Copérnico, Kepler, Galileu, Newton e Einstein, e o pior, faziam Rock nos finais de semana!

As aulas de religião continuaram e foram se misturando com as aulas de história, geografia, física... Mas foi em 1996, quando já tocávamos relativamente bem, que, no festival de música sobre matemática, entendi o significado da inquisição e percebi que moral não tem nada a ver com religião.

Diante das ocorrências passadas, em que só se apresentavam músicas falando idiotices, elaboramos um plano.

O Plano:
Iríamos concorrer com uma música de conteúdo nosso, bem elaborado, e outra, que concorreria pelo ginásio para Thiago (que permanecia na 6ª série), com conteúdo medíocre, assim, certamente conseguiríamos tocar e realizaríamos um protesto.

Conforme imaginado, nossa música rendeu pontos na matéria, mas não foi classificada para tocar. Era uma música bem feita, narrava a história da matemática, no refrão... O refrão era o seguinte: “Já dizia GALILEUUUU, a matemática é o alfabeto com que Deus escreveeuuu o universoooooo!”.
O colégio católico jamais admitiria aquele refrão. A canção foi barrada, mas, eles morderam a isca, a música idiota que fizemos passou e iríamos nos apresentar. Era o que queríamos!

No dia da apresentação, após tocarmos a maior cretinice musical já vista, nosso orador, Galileu, fantasiado de Jesus Cristo, iniciou um discurso incisivo, bem fundamentado e que repercutiria no Vaticano, tamanha foi a agitação da platéia. Mas, em seguida, Copérnico tomou o microfone e após proferir um discurso à Jim Morrison, deu o desfecho final, entoando a palavra que até hoje ecoa pela escola, e foi o Álibi que o conselho eclesiástico do colégio queria. Ele disse “PORRA”!
A confusão estava feita, filmada e registrada (a fita ainda existe).

Na segunda feira, Galileu, Kepler e Copérnico, foram convocados a se explicar no conselho. Exigiam um pedido formal de desculpa em 48 horas, sob pena de expulsão; fomos acusados inclusive de embriaguez! A incontinência verbal de Copérnico ia custar caro.

Não tive dúvida, estávamos na inquisição. Nós os protestantes!

Tinhamos o prazo de 48 horas para apresentar as desculpas pelo “Porra”, que, segundo o diretor eclesiástico afirmava, nunca tinha sido pronunciado naquele colégio.
Fizemos um conclave e deliberamos a questão; votei pela expulsão, fui voto vencido. Elaboramos uma retratação retirando o termo inadequadamente utilizado, mas, mantivemos o protesto. Fui mais além, no outro ano sai do colégio.

Ali morreram Einstein, Copérnico, Kepler, Galileu e Newton, mas nós continuamos.

Ano 2007, fui até este mesmo colégio acompanhar uma atividade, ao chegar não pude deixar de reparar um grupo de jovens na média de 13 anos, que realizavam uma dinâmica de grupo.
De repente ouvi um grito: - Eu sou o presidente, sou Lula!
Antes que eu pensasse alguma coisa, uma voz ainda mais infantil: - Eu sou Bebeeel! e mais outra: - Eu sou Zé pequeno, PORRAAA..!
Pronto, este assinou a sentença de morte; pensei.

Reparei uma menina encostada, quieta no canto, olhando tudo, parecia inconformada (acreditei nisto). Pensei: “esta vai salvar.” foi quando lhe fizeram uma pergunta que eu conhecia:
- Quem você quer ser? O suspense tomou conta da situação, voltei no tempo e senti a pergunta; identifiquei-me com aquela criança posta em xeque.

Quase chorando a menina responde: - Queria ser Bebel.
O diálogo prossegue...
- Então tá, pode ser, eu serei Cicareli!
- Sério?
- Claro, amigo é pra essas coisas! (imediatamente lembrei de meus amigos, da foto de Einstein, do campo de barro que não existe mais).
Fui embora do colégio, mais uma vez.

Ah! A música que venceu o festival de matemática naquele ano?
Não lembro o nome, mas o refrão e a coreografia... isso eu me lembro:

“Vai descendo na continha da matemática /desce mais, desce mais um pouquinho, desce mais desce devagarzinho.”

Tinha uma garrafa e tudo, bem no meio...do palco é claro.


“Eu medi os céus, agora medirei as sombras da Terra. Embora a minha alma rume ao céu, a sombra do meu corpo permanece aqui.” Kepler (1571 -1630).

Um comentário:

Anônimo disse...

Duda,

Eu queria ser alguém que estivesse lá naquele momento, pois só vi o que aconteceu pela fita (que existe e está comigo!!!).
Lembro-me do discurso intelectual de Galileu (vulgo alexandre) que até aí tudo bem, contudo o radicalismo mais uma vez foi o divisor de àguas
e foi aí o pecado; sorte que não se rezou o Pai Nosso e Ave Maria. Mas o PORRA foi bem fundamentado pena que socialmente
ele não é aceito! A subordinação mental sempre foi o modo de controle do ensino religioso e sempre será. Quem cometia insubrodinção era castigado e lembro bem dos castigos:
O aluno era fichado (pasta vermelha, quem lembra?), era obrigado a passar todos os recreios pelo tempo que fosse necessário com uma figura estranhíssima chamada IVETE, era advertido, suspenso e expulso (este em último caso).
Mas o mais importante que vejo é a subordinção mental dos adolescente de hoje que não está presente só na escola mas também na vida. Cicareli,
Bebel, Zé Pequeno?!!!!! O que é isso? ou melhor QUE PORRA É ESSA?!